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TUDO EM TODO LUGAR AO MESMO TEMPO

 


Tudo em todo lugar ao mesmo tempo


Uma vida comum que se movimenta de fracasso em fracasso e precisa forjar verdades para proporcionar a sensação de que a vida faz sentido. Esse é o dilema da imigrante chinesa Evelyn Wang interpretada pela atriz Michelle Yeoh em “Tudo, em todo lugar, ao mesmo tempo” (2022). Uma personagem com problemas tão reais que consegue nos prender a narrativa complicada desenvolvida pelos roteiristas e diretores Daniel Scheinert, Daniel Kwan. Quantos de nós já não vivemos o mesmo dilema, tentar atribuir um valor maior do que nossas ações realmente têm, para não nos sentir frustrados com os sonhos e projetos que não conseguimos realizar? Criar uma ilusão, um personagem de nós mesmos, para nos sentirmos úteis, importantes... para justificar nossa própria existência.

O que me leva a escrever sobre essa obra é o crescente interesse por um tema que aos poucos, pela insistência, tem se tornado menos nebuloso: O multiverso. Duas explicações são muito usadas para definir esse conceito. A astronômica, que afirma que nosso universo é finito no que se refere a quantidade de estrelas, planetas e outros objetos cósmicos, e que podem existir outros universos assim. A outra intepretação é mais mística e filosófica, afirma que para cada decisão tomada pelos humanos surge um novo universo, uma nova realidade que é formada na direção contrária àquela decisão. No caso da obra em questão, e da maioria dos filmes e séries produzidos atualmente, a utilização filosófica é mais comum.

Diante de uma perspectiva cristã filosófica o filme é muito feliz em apresentar os conflitos vividos pelos homens. Sobre o sentido da vida, sobre a consequência imediata e cada ação tomada, sobre o que é verdade. Algumas questões morais, religiosas também vem à tona: O que é pecado? Qual o valor das instituições, como casamento e a família? Como podemos alcançar a felicidade? Essas reflexões não são tratadas de forma displicente, são muito bem exemplificadas nas relações travadas por Evelyn Wang, seu esposo Waymond Wang e sua filha Joy Wang. Um grande conflito moral é travado por ela ao comparar a superficialidade das virtudes dele em contraponto à crença da filha de que não existem verdades absolutas por isso não existe possibilidade de se estabelecer um padrão moral válido, ou seja, nada é virtude.

Rookmaaker[1] nos lembra que essa é a grande dualidade na qual a sociedade ocidental se meteu: Ou o homem “é exclusivamente determinado pelas leis econômicas, sociológicas, psicológicas e biológicas, de que ideias, religião e todas as demais coisas que são humanas não são mais que reflexos secundários, sublimação, racionalizações, o resultado do condicionamento”; Ou, para fugir da ineficiência da primeira forma de ver a vida, “torna-se irracional: algo incompreensível, algo estranho sobre o qual não podemos falar de uma forma sensata e “normal”, que não podemos discutir e, sem dúvida, nem explicar”.

Dessa forma, o filme arranha verdades como o “amor”, mas acaba diminuindo-o até caber em uma troca materialista para satisfação pessoal. Nele o transcendente cabe dentro das escolhas humanas e deságua na amoralidade e na falta de propósito. Enquanto eu assistia a luta da protagonista pela sua própria epifania, em meio a cenas baixo valor moral, não fugia de mim a sensação de que sua filha estava à beira do suicídio. O pleno conhecimento sobre de suas escolhas acabou por conduzir a Joy (ou da entidade Jobu Tupaki) ao completo desespero. Sua fuga não poderia ser outra, a aniquilação da sua própria existência. Dessa forma, no final, a luta pelo multiverso se resumiu a uma luta para salvar a existência de sua filha, nada mais... nada mais existencialista...

O final “feliz” proposto pelos diretores é frustrante para quem caminha sobre uma cosmovisão cristã porque não livra a protagonista dessa dualidade. A narrativa mostra como solução a busca por satisfação pessoal na diversidade de satisfações e sensações meramente humanas. Tolerância, paixões carnais, ligações de amizade, aceitação do outro com base apenas no desejo de viver em uma falsa paz. No filme, mesmo em confusão, a relativização dos problemas e a condescendência com o diferente são suficientes para afastar Evelyn Wang do completo nada. Mas não acontece assim na vida real. Os valores de amizade e comunhão são vazios sem um referencial de verdade e de bem. Vivemos em um mundo criado e gerido por Deus, são as leis morais dele, os valores originados nele que conduzem o homem aos universais tão desejados como liberdade, felicidade e sensação de pertencimento a algo maior que o próprio homem, que é o sentimento de comunidade.

Não é à toa que os filmes sobre multiverso são tão comuns em narrativas de filmes de heróis e séries da cultura pop. Elas estão em sintonia com os dilemas e com as respostas propostas por um sociedade pós-moderna, relativa e sincretista como a nossa. Estamos profundamente atraídos pela narrativa que nos liberta das consequências das nossas escolhas; que nos distancia do padrão moral exigido por Deus para os homens; que nos liberta até do que é racional. Por outro lado, quando nos deparamos com a realidade, também não queremos nos distanciar de valores que consideramos importantes e bons como o amor ou a sensação de pertencimento. É por isso que “Tudo, em todo lugar, ao mesmo tempo” é um sucesso estrondoso por onde passa, além de uma alta produção e excelentes interpretações, ele oferece tudo. O filme não opta por uma das duas soluções, ele abraça as duas. Reconhece que não há valores, que não existe uma verdade, mas se apega a ilusão do sentimento de amor que tem fim em si mesmo. Nada mais relativo e subjetivo. Nada mais pós-moderno. Nada mais...

Esse discurso não pode entrar de forma sorrateira no nosso ideal de mundo, na nossa cosmovisão. Por isso que o evangelho é tão necessário na narrativa das nossas vidas. Em Cristo somos libertos do nosso maior mal, o pecado e não os nossos fracassos em não realizar os nossos sonhos. Nele somos bem-aventurados, quando somos potencializados a amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo com a nós mesmos. É em Cristo que somos feitos “um” com os discípulos dele e podemos viver uns com os outros como irmãos. A resposta para a falta de propósito ou de sentido está em Cristo.  “Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas” (Rm 11.36). Jesus arroga para si a qualidade mais temida desse século, Ele é a Verdade e por mais que tentemos contender com Deus, Ele é o Legislador e Juiz. Encontramos sentido e propósito no plano de Deus para o homem, em render glórias a Ele e em desfrutar de um relacionamento com Ele para sempre. Realizar o propósito Dele é o que faz com quem olhemos para os nossos fracassos e ainda rendamos graças a Deus porque Ele está conosco, nos conduzindo, nos guiando independente das circunstâncias.

 



[1] ROOKMAAKER, H. R. A Arte Moderna e a Morte de Uma Cultura. p. 213, 215.




Rev. Bruno Campos de Alcantara Santana, pernambucano, Bacharel em Teologia: Seminário MTC – Latino Americano – MG (WEC Internacional); Seminário Presbiteriano JMC – SP; e Universidade Presbiteriana Mackenzie – SP. Licenciado em Educação Física pela UEFS – BA. Magister Divinitatis em Estudos Histórico-teológicos no CPAJ – SP. É Pastor na Quinta Igreja Presbiteriana de Guarulhos – SP. Professor de Educação Física. Casado com Carolina e pai de Lara, Arthur e Theo, divide o tempo que sobra (depois que as crianças dormem) entre guitarra, cinema, literatura fantástica e vídeo games.

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